domingo, 23 de agosto de 2015

A Cabra Artesã

Nessas viagens mirabolantes que fazemos e escutamos às vezes alguém contar e sempre duvidamos da verdade e rimos silenciosos dentro de nós imaginando o porquê de uma mentira tão horrorosa e sem sentido, essa historia se enquadra com certeza. Lá pelas bandas de Vitoria da Conquista na Bahia numa dessas cidadezinhas que não constam no mapa e que ninguém lembra o nome das ruas e do numero das casas porque não recebem noticias e nem outra necessidade de se ter mesmo nomes e números existe, parei pra tomar alguma coisa e descansar as pernas já cansadas de ficarem dobradas dentro do carro. Um cidadão nativo da região, com sotaque bem carregado começou a contar em meio a nossa conversa que havia ali muitos artistas, poetas, artesões e tantos que exerciam o duro oficio da arte com muita maestria. Num tom mais grave disse que os artistas de alguma forma voltavam a habitar a cidade depois de mortos. Seus nomes eram colocados em escolas, ruas, praças, bares, eventos e festivais no sentido de homenageá-los. E aqueles artistas que por não terem atingido um grau de reconhecimento em vida ou simplesmente por distração das próprias autoridades competentes foram esquecidos com o passar do tempo, suas almas contrariadas e revoltadas, voltam em animais que em vez de grunhir, latir, berrar e miar como tradicional de sua espécie, repetiam o nome de suas almas. Tudo me suou tão fantástico e mirabolante que dei gargalhadas absurdas e irônicas na cara do cara. O sujeito com ar sisudo me desafiou a conhecer a prova mais concreta deste fato bem perto dali. Eu que estava por conta mesmo dessas especulações, decidi averiguar a veracidade da estória. Falou num tom desafiador para irmos até a casa de Emanuel e eu veria com meus próprios olhos a reencarnação de Maria Trindade, artesã filha de artesão que tinha morrido há alguns anos. Pensei logicamente uma serie de hipóteses, ou ele era louco, ou queria me roubar, me matar ou ele era gay e menos que ia me levar pra ver a alma da Maria num bicho. Calculei o tamanho de minha curiosidade e o comprimento de meu medo, mais minha covardia e preguiça e venceu a curiosidade. Caminhamos em direção a casa deste tal Emanuel para que eu comprovasse e visse com meus olhos a fantasmagórica história. Chegando lá algumas crianças distraídas brincavam na frente da chácara, carrinhos feitos de garrafas descartáveis e latinhas de alumínio. O homem com um olhar que não entendi acentuou as crianças com movimentos dos olhos e da cabeça. Achei estranhíssimo. Um pouco depois da porteira estava Seu Emanuel, sentado em um tronco de árvore fumando um cigarro de palha e contemplando o verde a sua volta, que era muito com certeza, pois havia cerejeiras, mangueiras, limoeiros, abacateiros e toda espécie de chás e ervas medicinais plantadas ali. Ele estava parado, uma sensação de tranqüilidade era a presença de um zéfiro reverberante a seu redor. Quando nos avistou levantou prontamente a nos atender, cumprimentou o homem e me cumprimentou também nos convidando pra entrar. Voz rouca, cansada, andar lento, já foi andando na frente e nós o seguimos calados a observar a variedade de rosas, orquídeas, acácias, bromélias, camélias, margaridas, lírios, palmas, coqueiros e muitas plantas que não conheço e não sei o nome. Em meio o caminho ele pára, se vira pra mim e diz calmo e sereno que está cobrando dez reais pela visita. Concordei com a cabeça e prosseguimos. Havia depois das plantas um galinheiro, um chiqueiro e mais a frente bem rente a mata ciliar, uma casinha rosa muito bem feita e uma cabra marrom com manchas brancas pelas costas. Achei-a muito simpática e amistosa, mas senti um pavor em pensar que ali estava realmente a alma de Maria Trindade. Quando insinuei que ia dizer algo Seu Emanuel me calou instantaneamente com um movimento das mãos. Chamou Maria pelo nome, ela veio, ele tirou dum saco plástico pendurado na cerca uma latinha de alumínio e deu na boca da cabra. A Maria Cabra com uma calma de monge budista, um olhar singelo e resignado começou a mastigar a lata que estalava a cada mordida e rangia e se contorcia se despedaçando. Em instantes a lata sumiu entre os maxilares de Maria e desapareceu goela abaixo. Olhamo-nos varias vezes silenciosos e impressionados, quer dizer, pelo menos eu estava muito. Quando pensei em perguntar, novamente fui interpelado por Seu Emanuel, mas agora só com um olhar. Ele disse logo em seguida se afastando e sentando na grama de frente ao cercado da cabra que ela já estava com muita pratica e que em dez minutos tava pronto. Questionei o que aconteceria em dez minutos, um gesto novamente dos dois com a palma da mão foi a resposta. Elogiei a propriedade, as árvores, as plantas e os animais. Mas os dois homens olhavam a cabra com tamanha veneração e devoção que achei que eles nem ouviam. Seu Emanuel muito educado me agradeceu e disse estar a sua vida toda colocada ali. Cada detalhe, pedra, planta, flor, arvores e caminhos. Tudo feito com o amor da mulher e dos filhos. A cabra ficou um tempo parada olhando para nós e depois andou em círculos rente a cerca, parecia passeando lenta,olhando ao redor e balançando o rabinho. Os dez minutos foram passando e cada vez o temor do que poderia acontecer de mais bizarro, me atormentava o pensamento. Foi quando ao termino dos dez minutos Seu Emanuel levantou e chamou Maria novamente e com ar doce e carinhoso a questionou o porquê da demora. Foi tão intrigante, pois a cabra o olhou com uma ternura imensa, completando com um sorriso meio de lado como se tivesse entendido o seu dono, então virou as costas e começou a rebolar o traseiro e a levantar o rabo. Não consegui não pensar que o homem tinha uma relação sexual com a cabra. Meu constrangimento não cabia naquele espaço de tanto horror. Foi quando num esforço intestinal, a cabra Maria soltou pelo seu anus, uma panelinha de pressão miniatura, feita da mesma latinha que ela havia comido há minutos atrás. Meu coração palpitou sublime de emoção e espanto e a vontade de sair logo dali me correu os nervos. A presença da cabra se tornou pra mim demoníaca e profana. Recuei com agressividade quando Seu Emanuel quis me entregar a obra de arte da cabra na minha mão. A principio disse não querer a tal panelinha Cabral. Aceitei-a depois de uma boa lavada e numa sacola, para servir de prova deste fato tão extraordinário. O caminho até o carro interroguei o homem sobre como sabiam que era Maria Trindade mesmo aquela cabra e por que não a devolvem a família. Mas o homem nada disse. O certo é que este fato mudou totalmente minha opinião sobre varias coisas e sobre os animais e os homens. Quem quiser saber e ver e comprovar além da panelinha minha historia, é só voltar ao começo e ver o endereço.